sexta-feira, 3 de abril de 2015

No cimo do Calvário

Colocamos mais uma parte da Paixão de Jesus segundo a Beata Alexandrina. Ela é uma intérprete particularmente habilitada para nos esclarecer sobre o sentido redentor do sofrimento de Cristo.

Entrega-se à morte

1. Cheguei ao Calvário, e desfalecida, sem vida. Levava no coração um peso imenso.
2. Caí desfalecida, com o rosto em terra, junto à cova, que já estava aberta para ser levantada a cruz.
3. Senti como se viesse sobre mim um mundo de feras. Que raiva e que peso imenso elas des­carregaram sobre mim! O coração ficou sempre esmagado e a bater em grande aflição: parecia expirar a cada momento, e expirar em trevas e medonha cegueira!
4. Que desespero sinto em mim! E desespero de amor. Tudo me causa horror: a morte, o abandono, ó meu Deus! De joelhos, levanto os olhos para o Eterno Pai: dou-Lhe o meu sinal de aceitação a tudo. Entrego-me à morte. Baixo os olhos, entro em mim e num abraço mais íntimo estreito tudo ao meu coração.
5. Abraçar aquilo que me causa tédio e nojo!

É despido

6.   Tiraram-me as cordas que me cercavam o pescoço e a cinta: que enormes dores! Elas estavam enterradas na carne, ensopadas em sangue. Ao serem arrancadas, deixavam-me no corpo marcas com grandes feridas.
7.   Ao serem-me tirados os vestidos, foram tira­dos com tanta pressa que chegaram a rasgar-se. Que dores violentas ao irem com eles pedaços de carne!
8.   Os olhos, com o sangue, não podiam abrir-se, mas a vergonha obrigava-me a conservá-los mais pro­fundamente fechados: ser despida em público!
9.   Só a mesma graça divina me podia segurar de pé. Quero exprimir-me melhor: não a mim, mas a Jesus[i].
10. Senti logo que a Mãezinha queria com o Seu manto cobrir Jesus, revestido em mim.
11. Senti a vergonha de Jesus: que coisa tão profunda! Não sei o nome que hei-de dar àquela vergonha.
12. Meu Deus, que nudez a de Jesus, que pudor sem igual![ii] Com a vergonha todo o Seu san­tíssimo corpo estremeceu.
13. O Seu rosto divino ficou como que incen­diado.
14. Foram tantas as risadas de escárnio, que ecoavam em todo o Calvário!
15. De longe Jesus levantava para o Céu os Seus olhares; baixava-os de novo, para mais intimamente sofrer no Seu Coração.

“Trespassaram as minhas mãos e os meus pés. Cerca-me um bando de malfeitores” (Salmo 21, 17)

16. Estenderam-me na cruz.
17. Senti como se fosse eu mesma a deitar-me sobre o madeiro e a estender as mãos e os pés para ser crucificada. Era um abraço eterno à cruz, a obra da redenção.
18. Os membros de Jesus estavam nos meus, o     Seu divino Coração no meu estava. Éramos os dois num só corpo a sofrer. Foi violentíssima a cru­cifixão. Sentia quase como que se me arrancassem os braços e pernas fora, tal era a força com que eram puxados para chegarem ao ponto marcado da cruz.
19. Que brado tão doloroso de socorro saiu de dentro de mim para o Eterno Pai! Que olhares tão enternecidos saíam dos meus olhos a fitarem o firmamento, a movê-lo à compaixão!
20. Vi o soldado que com grande crueldade dava as marteladas: era destemido, de olhar cruel e aterrador.
21. Via-o levantar o martelo ao alto e com toda a força o deixava cair no cravo.
22.  Ecoava dentro em meu peito o som estron­doso do bater dos cravos. Fiquei com os meus pul­sos e pés abertos como se fossem por eles tres­passados[iii]:
23.  Sentia que das feridas dos cravos corriam fontes de sangue.
24. Sentia como se outro cravo, mais duro e doloroso, me cravassem no coração.

As marteladas ecoam ao longe mas não movem os corações

25.  Foi dolorosíssima a abertura das chagas.
26.  Senti como se os cravos me trespassas­sem todos os nervos.
27.  Não senti só os pés e as mãos rasgadas: todo o peito o foi também. Parecia nada ter dentro: tudo tinha sido esgotado.
28.  A dor aumentou, e o último momento da vida, se não fosse um milagre, era no mesmo instante.
29.  Ao ser a cruz voltada para revirar os cra­vos, foi meu rosto no solo muito ferido e uma gol­fada de sangue me veio aos lábios.
30. Que doloroso foi o retirar dos cravos!
31. Todas as dores das feridas e fúria dos sol­dados vinham bater no meu coração; e sentia como se os soldados mo despedaçassem e esmigalhas­sem a dentada, tal era a sua raiva.
32.  Via as línguas blasfemadoras que blas­femavam contra mim.
33.  O meu Calvário, o meu Calvário!
34.  Foi Jesus, não fui eu, que assim foi ferido. Mas não sei exprimir-me doutra forma.
35.  As pancadas que apertavam os cravos não eram só para o Calvário: pareciam ecoar no mundo inteiro.
36.  Nem o som das fortes marteladas sobre os cravos que entoavam ao longe, nem a vista de tanto padecer, moviam os corações!

“Com Ele crucificaram mais dois, um de cada lado” (Jo. 19, 18)

37.  Crucificada, fui levantada ao alto.
38.  Que grandes dores eu senti em todas as chagas ao deixar a cruz cair na cova com tanta força! Pareceu cair num poço.
39. Com o estremecer da cruz, avivaram-se mais as feridas dos espinhos. E uma chuva de san­gue caía deles, banhava-me o rosto.
40.  Todo o meu corpo restava coberto de espi­nhos como um ouriço: tudo era dor, tudo era sangue.
41.  Não cessei mais o meu brado ao Céu: “Socorro, socorro!”.
42.  Fiquei com Jesus tão presa à Sua dor e agonia, que nada havia que nos separasse.
43.  Ao lado de Jesus foram crucificados os dois ladrões. Eu sentia que os sofrimentos, as cru­zes deles sobrecarregavam sobre mim, sobre a cruz de Jesus que em mim estava. Sentia sair do Cora­ção divino de Jesus o mesmo amor, as mesmas graças: um aceitava-as, o outro repelia-as.

“Junto da cruz estavam algumas mulheres: a Mãe de Jesus... e o discípulo que Ele amava” (Jo. 19, 25-26)

44. Que corações aflitíssimos rodeavam a cruz!
45. S. João, as três Marias[iv].
46. Mas o coração da Mãezinha em nada se parecia com os outros.
47. A Mãezinha com os olhos fitos em Jesus, com duas fontes de lágrimas a correrem-lhe pelo seu santíssimo rosto, agonizava com Ele.
48. Jesus não via com os Seus santíssimos olhos o pranto da querida Mãezinha, porque os tinha ora fechados, ora levantados ao Céu; mas tudo via e ouvia com os seus ouvidos e olhares divinos.
49. Estes iam penetrar toda a dor que no mais íntimo do coração A faziam agonizar.
50. Do alto da cruz murmurava: “Mãe, minha Mãe, até Tu serves para meu martírio! A tua dor aumenta-mo: nem ao menos Tu podes aliviar-me!”
51.  Ela murmurava: “Tu és meu Filho, eu sou Tua agonia”.
52. A Mãezinha, quanto sofreu com Jesus! Na cruz, no Calvário, era Ele com Ela um só coração, uma só alma, uma só dor, um só amor[v].
53. Como Ele, eu queria enxugar as lágrimas da Mãezinha, consolá-La na sua dor, fazer-Lhe o que Ela bem depressa ia fazer a Jesus, mas com Ele já morto.
54. A todos os momentos eu tinha que abra­çar-me a mim mesma, para mais em mim estreitar o Coração da Mãezinha. Quanto mais Ela sofria, mais eu A amava, mais Ela era mais a minha Mãe.
55. No cimo da cruz, continuámos os três na mesma dor.

“Repartem entre si as minhas vestes, e lançam sortes sobre a minha túnica” (Salmo 21, 19)

56. Vi amontoados os vestidos de Jesus, de­pois retalhados e leiloados[vi].
57. Senti como se fosse dado no coração um grande corte com a espada numa capa roxa: não feriu o pano, mas feriu-me a mim.
58. Feriu-me a maldade e crueldade com que o fizeram.
59. Que doloroso foi: os Seus vestidos retalhados e alguns pedaços tão ensopados em sangue que se colavam à minha alma como se fossem sina­pismos! Que dor, como os senti tão ao vivo! O san­gue, as carnes do inocente Jesus nos pedaços do Seus vestidos!
60. Com o peso do corpo, as chagas abriam-se cada vez mais;
61. O sangue caía das mãos e pés com abun­dância.
62. Oprimida pela violência da dor produzida pelo rasgar das chagas, senti como se uma veia junto do coração se rasgasse também: e dele saiu muito sangue que se espalhou pelo corpo, para romper por todas as feridas.
63. Sentia todas as chagas, mas mais vivamente a do ombro; e a cinta ainda parecia ser cor­tada pelas cordas.
64. Os nervos estremeciam: pareciam enco­lher-se.
65. A dor atingia o seu auge.

Que ânsias de O ver desaparecer custasse o que custasse!

66.  Cingiram à minha cabeça o capacete dos espinhos que me causaram tanta dor e quase me faziam desnortear. E o coração quase deixava de palpitar. Não eram mãos que no alto da cruz aper­tavam esse capacete, mas era o rancor mais que infernal de tantos corações.
67. Sentia como se me escarrassem e açoi­tassem mesmo no alto da cruz! Sentia os açoites na alma, como se me fossem dados no corpo.
68. Ao ouvir as maiores injúrias, sentia correr no meu corpo bagadas do suor da morte.
69. Parecia-me que todo o corpo e alma se rasgavam de dor, à semelhança de pano, fio a fio.
70. Custou-me tanto a crueldade e ingratidão daqueles que desdenhosos ocupavam o Calvário!
71. Senti que em muitos corações aumentava o ódio, o aborrecimento contra Jesus — um desejo de O ver desaparecer dos seus olhares venenosos, fosse como fosse, custasse o que custasse.
72. O inocentíssimo Jesus estava num gemido contínuo.

A Paixão de Cristo renova-se continuamente através dos tempos

73. Ondas de insultos, tormentos e maldades caíam sobre mim.
74. Não sentia ali só os maus-tratos do Cal­vário, mas sim os de todo o mundo.
75. Os meus olhos mergulhados nas trevas nada podiam ver; neles tinham outros olhos que viam tudo, tudo através dos tempos, todo o sofrimento que até ao fim do mundo havia de ferir um Coração que junto ao meu estava.
76. Da cruz fiquei a ver em todo o mundo todos os sofrimentos que, no decorrer dos tempos, a cada momento, iam renovar a Paixão de Cristo, que de mim se tinha revestido.
77. Sentia os golpes de toda a humanidade, pessoa por pessoa: uns com toda a crueldade e maldade, outros forçados e até inconscientes do mal que faziam.
78. Tudo sentia, tudo me estava presente: o passado, o presente, a ingratidão e maldade do futuro.
79.  Eu queria[vii] poder chorar as minhas cul­pas e as de todo o mundo. Se eu tivesse a dor e o arrependimento da Madalena! Mas não, não tinha! Só tinha as ânsias de me abraçar à cruz por amor de Jesus.
80. Sentia-me abraçada à cruz: queria sofrer, queria morrer.
81. O meu calvário morto[viii] tinha lágrimas; estas mergulhavam nelas a humanidade inteira. Esta morte bradava, e junto a ela havia a dor infinita e as ânsias infinitas de ao mundo dar a vida.



[i] Sim, Jesus resistiu a tão atrozes tormentos porque amparado pela Sua Divindade.
[ii] O despimento das vestes completa o desapego total de Jesus e torna-O completamente disponível para o sacrifício pedido pelo Pai. A Alexandrina insiste neste pormenor, porque vive, no seu recato de mulher, o que sente acontecer com Jesus.
[iii] A Alexandrina sofreu os estigmas místicos (Cfr. Cronologia da vida, pág. 69…)
[iv] “A Mãe, Maria mulher de Cléofas e Maria de Magdala. (Jo. 19, 25).
[v] A Senhora das Dores encontra-se lá, com o coração trespassado pela dor (Lc. 2, 35), qual nova Eva junto do novo Adão que realiza na árvore da cruz o Seu sacrifício redentor. Tal como a primeira Eva, junto da árvore do paraíso terreal, coo­perou com o primeiro Adão para a ruma da humanidade, assim Maria, Rainha dos Mártires, repara a desobediência da primeira Eva e torna-se “causa de salvação para si e para todo o género humano” (S. Ireneu. III, 22, 4; L. G. 58).
Ela lembra, outrossim, o dever da nossa participação na Cruz de Cristo para completar o que em nós falta à sua Paixão (Col. 1, 24). Esta Doutrina foi acentuada pelo Concilio Vaticano II (L. G., 61).
[vi] A túnica não foi rasgada porque era de uma só peça, sem costuras, e por isso foi tirada à sorte (Jo. 19, 23-24).
[vii] Aqui a Alexandrina não se sente identificada com Jesus.
[viii] Na medida em que a agonia de Jesus está ligada ao pensamento da morte, o que causa horror a Jesus não é a morte entendida como simples acidente biológico mas sim como sinal do pecado e, portanto da revolta do homem contra Deus e da separação d’Ele. Durante a Sua Paixão, primeiro no Getsémani, e talvez mais ainda no Calvário, para expiar as culpas da huma­nidade, parece que Jesus tenha voluntariamente experimentado a miséria e a solidão (a morte verdadeira) dos homens separa­dos de Deus pelos seus pecados. Compreende-se pois, como, por instantes, se tenha eclipsado em Jesus a consciência da Sua comunhão com o Pai; desta forma ela não proporcionava mais nenhuma consolação à Sua alma humana (cf. La sapienza della Croce oggi, o. o., vol. 1, pág. 77-78). A Alexandrina exprime de maneira lapidar este sentimento de Cristo e por ela experimen­tado, dizendo: “O meu calvário morto”.

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