quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Poesia da Beata Alexandrina (1)


Quase no final do nosso livro Até aos Confins do Mundo, colocámos uma antologia de poesia da Beata Alexandrina.  Os textos correspondem com exactidão ao que ela escreveu, mas dispusemo-los em verso. Cremos que foi o P.e Humberto o primeiro a tomar a liberdade de dar aspecto exterior de verso a fragmentos da obra dela; os Signoriles seguiram o mesmo caminho.
Quem lê esses textos, desde que possua um mínimo de sensibilidade poética, verifica que não é grande o favor que se faz à autora deles: a poesia estava lá – mas com o verso sente-se melhor.
É curioso notar a riqueza de recursos retóricos presentes num fragmento como o que se segue.
Começa com uma interpelação ao coração, uma apóstrofe, num tom de convite delicado mas insistente, que atravessa quase todo o texto, e termina com outra apóstrofe, agora ao amor.
Depois, há aquela espécie de quiasmo (meu coração/coração meu) e a anáfora (diz, diz; fala, fala; não, não), a epístrofe (versos que terminam com a mesma palavra: "Não canses, não deixes de falar do amor! / O amor que é amor, verdadeiro e puro amor"), o paralelismo ("ama de dia e de noite, ama na dor e na alegria"), com antítese (dia/noite, dor/alegria). A conclusão é por uma espécie de chave de ouro: “Oh, amor, como tu és grande e forte!”
Fala, fala, meu coração,
diz ao menos nestas linhas quanto desejas amar o teu Jesus!
Fala, fala, coração meu,
diz ao teu Jesus que só a Ele queres e que só nele queres descansar!
Não canses, não deixes de falar do amor!
O amor que é amor, verdadeiro e puro amor,
não pode calar-se,
não pode deixar de manifestar-se,
tem que falar e provar que ama sempre:
ama de dia e de noite, ama na dor e na alegria, ama na exaltação
e, se é amor verdadeiramente puro, ama mais ainda quando é humilhado.
Oh, amor, como tu és grande e forte!
As observações estilísticas anteriores mostram que a inculta Alexandrina, quanto a literatura, era muito mais sábia do que seria de esperar. A literatura dela não depende de livros: neste sentido, é como a das cantigas de amigo, por exemplo.
Já agora, repare-se que os primeiros versos do poema lembram um pouco os primeiros duma estrofe do Aniversário de Fernando Pessoa-Álvaro de Campos, onde também se interpela o coração:
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

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