segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Os inquéritos do P.e Silos em 1845


Para se medir a dimensão do descalabro que reinava nas fileiras do clero nos anos próximos da aparição da Santa Cruz de Balasar, leia-se o que temos andado a apurar.

O reatamento de relações do governo liberal com a Santa Sé em 1841 não significou, por exemplo, a restauração das Ordens Religiosas (o que seria perfeitamente razoável), o afastamento de todos os que se tinham infiltrado irregularmente nas estruturas da hierarquia religiosa, daqueles que tinham sido autênticos algozes de pessoas inocentes. Deve-se ter feito o que as circunstâncias permitiam. Mas foi um alento novo em direcção às posições da verdade e da justiça: a hierarquia dependia agora sem ambiguidades da Santa Sé, párocos injustamente expulsos regressaram às suas paróquias. Todos? Não fazemos ideia.
Um homem como o arcipreste de Vila do Conde não deveria pelo menos ter sido afastado do cargo? Hoje isso para nós é claro, mas não foi de modo nenhum o que se passou; continuou a defender abertamente, agressivamente as suas posições divisionistas, cismáticas. E morreu muito conceituado, em 1855. Mas se até o Dr. Manuel Loureiro chegaria a bispo!...
Conta-se que a abadessa de Santa Clara de Vila do Conde, ao avistar a armada liberal no oceano terá sentenciado: “Aquilo vem dar cabo disto”. Realmente as intenções que moviam D. Pedro e os liberais não eram boas, como já se saberia e depois largamente se verificou.
Tanto quanto nos parece, a revolução liberal provocou uma situação mais grave que a que associamos à República, e que já foi gravíssima. As divisões entre o clero foram então muito mais profundas, as humilhações mais duradoiras. Nem faltou a tentativa de vergar os sacerdotes pela indigência.
Os inimigos eram os mesmos, os pedreiros-livres, e tinham o mesmo objectivo. Mas os liberais mantiveram a sua posição muito mais tempo.

A Palestra da Junqueira

Desde o século XVIII, os párocos e outros sacerdotes reuniam-se mensalmente para tratar temas de interesse da classe. A essas reuniões chamava-se palestras.
Sabendo-se quem era o P.e Silos e que ele era o arcipreste, não é de estranhar que tivesse colocado à frente delas gente da sua confiança.
Em 1845, na área do arciprestado de Vila do Conde e Póvoa de Varzim, as palestras eram cinco:
A de Amorim, presidida pelo pároco de Nabais, tinha como vice-presidente o pároco de Terroso e incluía, além de Amorim, Nabais, Estela, Terroso e Laundos.
A da Junqueira, presidida pelo pároco da Junqueira, tinha como vice-presidente o pároco de Bagunte e incluía Rates, Balasar, Arcos, Rio Mau, Bagunte, Outeiro, Parada e Santagões.
A de Touguinha, presidida pelo pároco de Touguinha, tinha como vice-presidente o pároco de Argivai e incluía Touguinha, Touguinhó, Beiriz, Argivai e Formariz.
Havia depois a de Vila do Conde e a da Póvoa de Varzim.

Servindo-nos principalmente dos inquéritos do P.e Silos, vejamos o que se passava na da Junqueira.
Nela tinha o arcipreste um homem da maior confiança, o P.e João Gomes da Silva. Já se viu como o P.e Silos o avaliava: “a sua conduta moral, civil e política é a melhor possível, e sempre o foi; e quanto aos livros estão no melhor estado”.
Ele fora vítima das perseguições de D. Miguel, desde 28 de Outubro de 1828 a 30 de Março de 1834, quando a vitória liberal estava à vista. Pode até ter estado preso.
Regressado ao seu posto, parece ter sido particularmente expedito a pôr ordem nos párocos da palestra.
O vice-presidente era o pároco de Bagunte, um recuperado para o liberalismo, que fora foi suspenso (certamente pelo próprio pároco da Junqueira), entre 1834 e 1838, por afecto ao realismo; mas, em 1845, “a sua conduta moral, religiosa e política agora é boa”.
Sendo assim bons o presidente e o vice-presidente, analisemos o que por lá se passou.
O pároco de Balasar esteve expulso sete anos, entre 1834 e 1841.
O pároco de Rates “foi suspenso em 1838 por cismático e realista e reintegrado em 1843”.
O de Rio Mau deixou de paroquiar em 1834 (provavelmente por ter sido expulso).
O de Arcos, houve ordem para o expulsar, mas ninguém o quis substituir.
Em Santagões, ter-se-á passado algo ainda mais grave: a freguesia foi anexada à Junqueira, o que pode ter correspondido a uma verdadeira vingança do presidente da palestra (o pároco de Santagões cessa a actividade no mês fatídico de Abril de 1834)[1].
Restam as pequenas paróquias do Outeiro Maior e Parada. Do pároco de Parada, que há poucos meses ocupava o lugar, afirma o P.e Silos “que tem boa conduta moral e civil, porque não sabe o que seja: na verdade é um nulo”.
Do do Outeiro Maior, diz que “a conduta moral, civil e política é boa porque não sabe o que isso é – na verdade é um perfeito idiota, mas bom cidadão”.
Pelo que conhecemos das actas da junta de paróquia do Outeiro Maior, a que este pároco presidiu, elas dão dele uma ideia muito favorável.
Nenhum pároco desta palestra terá sido poupado. E quais os crimes praticados? Ser desafecto a um regime que impusera um cisma à Igreja.
As infirmações que acabamos de reunir podem deixar de fora ainda factos relevantes: houve muitas mais humilhações, por exemplo, sobre sacerdotes que não eram párocos. Dum deles escreve o P.e Silos:

Foi um cismático acérrimo, e um realista atrevido – hoje é bom, por não poder ser mau; da sua conduta moral pouco poderei informar, contudo nada me consta; tem forças e aptidões para ser pároco, se por desgraça o nomearem.

Havia contudo uma palestra onde as coisas não agradavam ao arcipreste, era a de Touguinha. O vice-presidente, pároco de Argivai, destoava no rebanho. Ele arrasa-o assim: “a sua conduta moral é fanática, a civil mal criada, a política infame miguelino, cismático acérrimo”.
Mas não lhe bastou: propôs a supressão da freguesia: “o lugar de Quintela para Vila do conde, os lugares de Gandra e Calvos para Beiriz e o lugar de Cassapos para Touguinha”. Isto é que seria cortar o mal pela raiz.
Quanto a chamar mal criado ao pároco de Argivai, é caso para dizer: olha quem fala!
Não sabemos se o P.e Sacra Família teria alguma influência na atitude do pároco da sua terra.
Não analisámos o que se passou nas outras palestras, mas não se deve ter chegado aos extremos ocorridos na da Junqueira.

Na imagem: Porta axial do Mosteiro de S. Simão da Junqueira.


[1] Conhecemos o caso duma paróquia que foi anexada em 1834 e que mais adiante também recuperou a sua independência. Do pároco dessa paróquia, não temos nenhuma indicação de que não cumprisse com as suas obrigações; daquele que provocou a anexação, sabemos que era um constitucional exaltado, que chegou a ser preso sob D. Miguel. Foi morto em 1838.

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